sábado, 2 de janeiro de 2010

O filho do farmaceutico

O filho do farmaceutico

Galileu Caneta tem oito anos e é um menino assustado. Pequeno, magro, muito branco, cabeça grande, loiro quase oxigenado e com grandes olhos azuis. Podia ser duble do E.T., o extraterrestre.
- Ele é filho do farmacêutico.
Foi o que disse sua irmã, Fátima, assim que viu o recém nascido bebe Galileu. Afinal, com uma mãe portuguesa com panca de moura e um pai brancola, mas de cabelo preto, aquele menino quase albino só podia ser filho do albinissimo farmacêutico da loja da esquina. Todos riram da inocência da irmã Fátima e o comentário se tornou uma piada familiar. Mesmo crescido, bastava chegar uma visita para que Mary, a mãe moura do quase albino Galileu, perguntava a filha:
- Com quem que o Galileu parece mesmo?
E ela respondia orgulhosa pela atenção, toda sorridente e marota:
- Galileu é filho do farmacêutico! Galileu é filho do farmacêutico!
Todos riam de tão engraçada piada. Menos o Galileu. Assim que ele entendeu o que queria dizer ser filho de alguém ele começou a levar essa história a sério: será mesmo que sou filho de meus pais? Essa dúvida preencheu toda sua infância. Do farmacêutico eu não sou filho. De uma única coisa Galileu tinha certeza: minha mãe é digna, ela não trairia meu pai... Mas não serei eu um filho adotivo?
No transcorrer dos anos, já na pré-adolêscencia, suas dúvidas foram se tornando certezas. Galileu foi, aos poucos, juntando pistas. Descobriu que sua mãe dizia ter engravidado dele (supostamente, é claro) aos 39 anos. Era uma idade avançada e isso não era comum naquela época. Descobriu que ela sempre teve problemas com reprodução e demorou para engravidar de sua irmã. “Tivemos até que fazer promessa a nossa Senhora”. Deu certo. Todos na família não gostavam do nome Fátima, mas sua irmã carregou a vida toda esse karma devido à bem sucedida promessa. E – principalmente - descobriu que tinha um irmãozinho anjinho, que todos falavam, um feto de seis meses que decidiu morrer antes de nascer. Para Galileu, estava tudo claro, clarrissimo. Sua mãe tinha dificuldade para engravidar. Teve um aborto. Ficou estéril. E, os pais, decididos a ter um filho homem, decidiram adotar Galileu.
“Elementar, meu caro, Cristian”, dizia ele ao pequeno primo e único confessor. Era tudo obvio. Galileu só não entendia porque eles insistiam tanto em continuar a viver essa mentira. Toda vez que passavam em frente ao Hospital São Caetano seus pais vinham com aquele papo: foi aqui que você nasceu! Foi aqui que você nasceu!
Mas Galileu não caía nessa. Impressionava-se com os detalhes da farsa: seus pais adotivos mentiam bem.
Mas era muito barulho por nada. Não precisava disso. Ele já tinha visto na televisão: contar para uma criança que ela é adotada pode causar um trauma imenso.Eterno. Deve ser por isso que não me contam. “Eles querem preservar minha psique”, pensava ele. Contar só na hora certa, para evitar traumas. Mas Galileu já se considerava maduro o suficiente para saber a verdade. E já tinha decidido: não vou perder tempo tentando descobrir quem são meus pais verdadeiros. Ao se abrir com seu primo sempre dizia: “Pai mesmo é quem cria”, dizia ele com tom maduro e voz meio gaga de criança.
Mas, em seus sonhos mais secretos, Galileu sempre imaginava uma grande aventura em busca de sua verdadeira origem. Uma aventura meio policial, cheio de arquivos secretos em porões imundos da ditadura e de personagens soturnos, vindos do reino da política e da magia. E imaginava seu pai de múltiplas formas, variadas, ao gosto do dia. Líder guerilheiro. Explorador da Amazônia. Budista no Tibete. Mas geralmente morto, falecido. Pois, no fundo, ele não queria outro pai vivo. Um já basta. Mas queria outra origem. Queria um novo mentor espiritual, um novo caminho. Assim, todos os pais mortos que imaginava eram sempre altivos, fortes, soberanos. Todos bem diferentes de seu assustado pai Espartacus. Sim, pois tal como Galileu, Espartacus também era muito assustado.
Foi assim, com medo da realidade ao redor, mas certo de sua orfandade oculta e de sua origem heróica, que Galileu cresceu.
Toda vez que sua mãe vinha falar com ele, ele aguardava a noticia: é hoje que vão me contar que sou adotado. Mas eles nunca disseram nada.
Pois, na verdade, ele não era adotado.
Galileu era mesmo filho de Mary com Espartacus e tinha uma única irmã, Fátima.
Essa é a pura verdade. Foi muito difícil Galileu aceitar isso. A vida então é só isso? São esses mesmos meus pais, é essa minha família? Sim, meu filho... É só isso mesmo... Galileu só conseguiu aceitar essa verdade inconteste já quarentão, após muitas e muitas horas de terapia intensiva.

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